quinta-feira, 6 de março de 2008

Limpo a lama que me impede de discernir o quanto estou longe do fim deste martírio. Há cerca de três dias que não para de chover, a mata parece-me toda igual e apenas consigo dizer que estou algures em Phnom Penh.

Recordo aquela tarde de Agosto, estava exausto, faziam 44º no exterior de minha casa, mas uma clareza invadia a minha mente, no televisor habitualmente usado para assistir a jogos de Futebol acompanhados de muita cerveja, era exibido um documentário, “ os verdadeiros Diamantes de sangue continuam”. Três horas de expurgações, degolações, corrupção, massacres e violações físicas e mentais apareciam diante dos mesmos olhos que lentamente aprenderam a verter lágrimas genuínas.

Prostrado no chão tentava assimilar o choque de me ser aberto desta forma o mundo real.

Durante semanas as noites foram passadas no beiral da janela, observando o nada, reflectindo sobre tudo, apreciando as mesmas estrelas que serviam de tecto a assassinos e assassinados. Séculos de história mundial sanguinária foram vividos rápida mas intensamente. Fui escravo no antigo Egipto, na Roma imperial, numa nau lusitana, na construção civil espanhola. Fui empalado na Roménia e na federação russa, gazeado na Alemanha, mutilado no Ruanda, decapitado no Camboja, torturado em Abugahibre e Guantanamo.

Acalmo a descrição daquele dia para meu bem, pois a pulsação atinge o seu limite e um som apresenta-se perante mim ao longe, parece-me familiar, porém os sons familiares que têm preenchido os meus dias são os das AK-47 e os gritos de mulheres violadas na mente e no físico.

Malditos sons assombrantes, não me saem do cérebro! Cento e cinquenta almas executadas de uma só vez por terem referido a palavra liberdade, no dia em que descobri o Camboja. Milhares tombados para que todo um povo sonhe.

Refugio-me por entre arbustos, não os de minha casa, como no dia em que fugi.

Cansado, revoltado com o planeta que acabara de conhecer, meti uma mochila as costas e procurei fazer algo, vaguei sem destino mas com orientação para sul, a ideia heróica e sonhadora de uma revolução mental concretizada apenas pelo meu poder de argumentação, foi caindo por terra à medida que os povos aprisionados pelo sofrimento me pediram para partir. Pois eu poderia trazer problemas.

Passei fome quando não encontrava povoações, fui escorraçado de algumas delas, e a vontade de esquecer a minha alma e voltar a casa…ai, ia-se adensando!

O som familiar é uma coluna de mercenários que me procuram, sustenho a respiração e o pestanejar aquando da sua passagem, já não desejo voltar a casa, sou perseguido é certo, milhões pereceram a defender os meus ideais. Mas não desejo voltar a casa, enquanto pelo menos um acreditar naquilo que refiro, todas as baixas e sofrimento terão sentido.

Quando pela 1ª vez tiveram encontrava-me no Sahara ocidental, arrastava-me pelo deserto há três dias sem encontrar povoações, não tinha ninguém, a não ser alguns sonhadores que me haviam seguido a partir de jornadas anteriores.

Movimento da areia em mais uma colina polvilhava-nos com um prenúncio sinistro, o calor alucinogénico não nos permitia discernir o que se encontrava perante nós a mais de dez metros de distância.

Devo confessar que nunca gostei de uniformes, nunca me deram a ideia de igualdade de direitos entre os que os vestem, como seria suposto. Mas sim de seres formatados, iguais entre si por terem perdido a sua individualidade. E no instante que subimos aquela colina, passei a odiá-los.

Dez mil daqueles seres, armados com todo tipos de material bélico, de fabrico de algumas das nações mais poderosas do planeta, apresentavam-se com uma “salva” de metralhadoras que instantaneamente ceifou a vida a vinte e três seguidores. Seguiu-se uma batalha entre robots armados com armas e homens armados com um sonho.

Desta vez os robots venceram.

Porém eu ganhei substancia. As lágrimas sangradas por cento e vinte e oito homens mortos, setenta e cinco capturados, vinte e três feridos gravemente (vinte e dois mais tarde faleceriam), não foram mais fortes que o alento de perceber que aqueles poucos que me seguiam, afinal eram milhares. Nesse momento eu perdi, para sempre, a vontade de voltar para casa.

Caminho na direcção de uma aldeia controlada por Khmeres Vermelhos, não é seguro mas necessito de água. No centro da aldeia um aglomerado de pessoas de militares, homens civis, mulheres e crianças não me permite observar o que se passa, mas ajuntamentos destes são a assinatura de execução pública. Roubo a água e fujo para a mata rapidamente, porém um desviar de olhar leva a penetrar em mim a gota do veneno da tristeza.

Kim, um grande amigo revolucionário encontra-se prostrado, morto, com o corpo separado da cabeça por uns doze metros, cabeça essa que é agora exibida como troféu por um rapaz que não terá mais que 11 anos. Pobre Kim, pobre rapaz. Mas retenho uma coisa, mesmo depois de morto, o olhar de Kim continua a mostrar que este foi um homem que deu sentido a palavra coragem

Também a mim tentaram decapitar varias vezes, Robespierre quase o conseguiu após a revolução francesa, porém fui sempre escapando, dessa vez cheguei a ter o pescoço alinhado com uma guilhotina, mas num volte face extraordinário todo um povo se uniu para me salvar e foi Robespierre que acabou no meu lugar.

Os anos foram passando, prossegui a minha missão, resisti aos romanos em Mossada, estive na capela de um general revolucionário em vinte e cinco de Abril de 1974, invadi o parlamento sérvio, derrubei um muro na Alemanha, fiz parte da guerrilha timorense. Discursei na Bolívia e no Brasil e no resto da América latina.

Que saudades da América Latina, foi lá que vi nascer o meu maior seguidor, não pelo que fez ou não fez, mas pelo que levou outros a fazer, pelo que inspirou. Jovem médico Argentino, de uma honestidade invejável, ainda hoje vejo o seu rosto junto ao peito de milhares em todo mundo. Tombou face à espada da opressão mas o seu espírito não morreu.

Ele está presente em todos Revolucionários, esta presente aqui nesta mata perdida algures no Camboja!

A minha pulsação aumenta repentinamente, momentos de distracção permitiram que caísse em mais uma emboscada

Um ex. seguidor meu corrompido pelo metal pontapeia-me no estômago, cuspo sangue. Sou amarrado. Sou cuspido. Sou esbofeteado. Mas não sou morto nem amedrontado!

Caminho já há horas, mas não me sinto exausto, derrubam-me novamente e as minhas costelas, salientes pela falta de alimento, embatem numa rocha (talvez três se tenham partido tal é a dor) ouço um dos homens a dizer que está a virar ambientalista e por isso me ira usar como cinzeiro, mais propriamente usa os meus olhos como cinzeiro, cegando-me não sei se temporária ou definitivamente. Ando mais uns quilómetros, a cegueira era temporária mas a dor é permanente, um outro refere que quer seguir o exemplo do primeiro, e como está no meio da selva e não existindo ali casas se banho, volta-me a derrubar defecando-me em cima.

Mas nada derruba a minha alma, continuo sem dizer nada, o meu olhar revela superioridade sobre aqueles homens e mesmo quando eles me violam sou eu que tenho a vantagem psicológica.

Estou agora numa sala de audiências, julgamento fabricado acaba de me condenar a forca, sorrio sereno, já sabia antes do julgamento que aquele seria o veredicto, sou levado a uma cela de dezasseis metros quadrados onde estão mais 50 outros reclusos. Passo esta que é supostamente a minha última noite, a contar a minha história, influenciando aqueles que conseguirem se salvar daquele calabouço a seguir o meu caminho. Há muito que não estava tão calmo, não sinto dor, não sinto ódio, apenas uma suave calma que me faz adormecer e descansar. Descansar antes da minha execução

Sou levado da cela por volta das 10h00, milhares vieram assistir a minha morte. Todos que tentaram um dia ser meus carrascos estão na primeira fila da plateia.

Hitler com o seu bigodinho aparado, Estaline com o seu desarranjado, Mugabe, Luís XIV, César augusto, Pinochet, Bush pai e filho, Sadam…

Todos maravilhados com o meu pescoço a ser colocado na forca, apertam bem o nó e no momento que o cadafalso se abre solto uma gargalhada audível em todo planeta.

Pois enquanto povos viverem oprimidos, manipulados. Enquanto crianças tiverem que pegar em armas em África para o enriquecimento do ocidente, enquanto almas forem torturadas eu não morrerei, não posso morrer.

Porque eu sou o espírito revolucionário!

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