segunda-feira, 24 de março de 2008

Sentado num banco

Acordo, sinto o desagradável aroma de quem teve pesadelos toda noite. Não sou um ser atormentado, porém o meu subconsciente é bastante, e nas últimas noites os monstros e seres de outras galáxias são substituídos pelo teu olhar afastando-se.

Nasceste algures no meu pequeno mundo, em sonhos em que partilhávamos o sangue, sentindo o sabor do outro misturando-se com o nosso. No entanto agora apenas tu bebes, sugas-me as réstias de vitalidade, apenas deixando o suficiente para que sobreviva, não te importas de me ver arrastar por entre ilusões, alucinando com a felicidade onde realmente existe um precipício.

Por vários anos tiveste inúmeras formas. Ou terei sido eu que te procurei em vários corpos, mas na realidade tu apenas assumiste dois? Surgiste sorrindo numa tela mágica, fruto do pincel de um mestre de talento inalcançável, porém nunca te tornaste mais do que esboço, pois a cor teríamos que ser nós a dar e eu, bem eu nunca fui um artista.

Abro a persiana lentamente, observo as minhas cadelas brincando, tentando focar a minha mente em algo que não seja o teu retrato a esfumar-se. Mas prendes a minha mente e este masoquista mental põe o cérebro a trabalhar compassado com o coração criando uma harmonia destrutiva da qual quero fugir. Por isso saio de casa, inspiro todo ar que posso. Este vem repleto de impurezas mas também me traz a vontade de vaguear, encontrar conforto nas ruas do Porto, sou um sem abrigo sentimental, no entanto procuro abrigo onde infelizmente muitos reais sem abrigo o fazem.

Um telefonema indica-me que terei um encontro. Serás tu? Dirijo-me então para uma ampla praça, embora não sem me perder antes um pouco dentro de uma livraria, aliás dentro das histórias que esta alberga. Quando chego a praça ainda ninguém lá está e sento-me num banco, à tua espera.

Um casal idoso abraça-se à minha frente e eu sorrio, por vezes esqueço-me como é bom sorrir, começo-me a perder em sonhos que com o tempo se têm mostrado inacessíveis e durante segundos sou eternamente feliz. Que delicioso contra censo, que porém desaparece rapidamente quando a eternidade acaba e a minha mente volta ao facto de estar ali prostrado, sozinho.

Alguém ergue o meu corpo, no entanto eu permaneço sentado naquele banco, à tua espera.

Não é contigo que me encontro, devido a isso apenas o meu corpo se move. Durante uma tarde ele vê as coisas mais belas, mas nada penetra a minha alma e tudo se perde no ar poluído da minha cidade encantada.

Apenas com o aroma nocturno, o meu ser volta a encontrar plenitude. A companhia mudou e questiono-me mais uma vez se estás presente? E em quem estarás presente? Pois o teu perfume habitual, confunde-se com um outro. Estás a adquirir novamente um corpo diferente? Ou a carência está a tentar-te fabricar?

O certo é que volto a ser capaz de adquirir a beleza dos espaços que percorro.

Deito-me com dois sorrisos, duas vozes, dois esboços de olhar na tela a que chamo mente. Um é com certeza o teu mas parece afastar-se, apagar-se. Outro aparece imperceptível, extremamente suave mas o meu coração tenta acreditar que nele vê carinho.

Adormeço, com iguais percentagens de tristeza e felicidade, pois creio que um dia o nosso sangue se confundirá novamente e apesar de nunca teres existido realmente sei que posso usar a mais bela expressão pela 1ªvez.

Amo-te

André (escrito na minha mente na ultima terça feira)

quinta-feira, 6 de março de 2008

Limpo a lama que me impede de discernir o quanto estou longe do fim deste martírio. Há cerca de três dias que não para de chover, a mata parece-me toda igual e apenas consigo dizer que estou algures em Phnom Penh.

Recordo aquela tarde de Agosto, estava exausto, faziam 44º no exterior de minha casa, mas uma clareza invadia a minha mente, no televisor habitualmente usado para assistir a jogos de Futebol acompanhados de muita cerveja, era exibido um documentário, “ os verdadeiros Diamantes de sangue continuam”. Três horas de expurgações, degolações, corrupção, massacres e violações físicas e mentais apareciam diante dos mesmos olhos que lentamente aprenderam a verter lágrimas genuínas.

Prostrado no chão tentava assimilar o choque de me ser aberto desta forma o mundo real.

Durante semanas as noites foram passadas no beiral da janela, observando o nada, reflectindo sobre tudo, apreciando as mesmas estrelas que serviam de tecto a assassinos e assassinados. Séculos de história mundial sanguinária foram vividos rápida mas intensamente. Fui escravo no antigo Egipto, na Roma imperial, numa nau lusitana, na construção civil espanhola. Fui empalado na Roménia e na federação russa, gazeado na Alemanha, mutilado no Ruanda, decapitado no Camboja, torturado em Abugahibre e Guantanamo.

Acalmo a descrição daquele dia para meu bem, pois a pulsação atinge o seu limite e um som apresenta-se perante mim ao longe, parece-me familiar, porém os sons familiares que têm preenchido os meus dias são os das AK-47 e os gritos de mulheres violadas na mente e no físico.

Malditos sons assombrantes, não me saem do cérebro! Cento e cinquenta almas executadas de uma só vez por terem referido a palavra liberdade, no dia em que descobri o Camboja. Milhares tombados para que todo um povo sonhe.

Refugio-me por entre arbustos, não os de minha casa, como no dia em que fugi.

Cansado, revoltado com o planeta que acabara de conhecer, meti uma mochila as costas e procurei fazer algo, vaguei sem destino mas com orientação para sul, a ideia heróica e sonhadora de uma revolução mental concretizada apenas pelo meu poder de argumentação, foi caindo por terra à medida que os povos aprisionados pelo sofrimento me pediram para partir. Pois eu poderia trazer problemas.

Passei fome quando não encontrava povoações, fui escorraçado de algumas delas, e a vontade de esquecer a minha alma e voltar a casa…ai, ia-se adensando!

O som familiar é uma coluna de mercenários que me procuram, sustenho a respiração e o pestanejar aquando da sua passagem, já não desejo voltar a casa, sou perseguido é certo, milhões pereceram a defender os meus ideais. Mas não desejo voltar a casa, enquanto pelo menos um acreditar naquilo que refiro, todas as baixas e sofrimento terão sentido.

Quando pela 1ª vez tiveram encontrava-me no Sahara ocidental, arrastava-me pelo deserto há três dias sem encontrar povoações, não tinha ninguém, a não ser alguns sonhadores que me haviam seguido a partir de jornadas anteriores.

Movimento da areia em mais uma colina polvilhava-nos com um prenúncio sinistro, o calor alucinogénico não nos permitia discernir o que se encontrava perante nós a mais de dez metros de distância.

Devo confessar que nunca gostei de uniformes, nunca me deram a ideia de igualdade de direitos entre os que os vestem, como seria suposto. Mas sim de seres formatados, iguais entre si por terem perdido a sua individualidade. E no instante que subimos aquela colina, passei a odiá-los.

Dez mil daqueles seres, armados com todo tipos de material bélico, de fabrico de algumas das nações mais poderosas do planeta, apresentavam-se com uma “salva” de metralhadoras que instantaneamente ceifou a vida a vinte e três seguidores. Seguiu-se uma batalha entre robots armados com armas e homens armados com um sonho.

Desta vez os robots venceram.

Porém eu ganhei substancia. As lágrimas sangradas por cento e vinte e oito homens mortos, setenta e cinco capturados, vinte e três feridos gravemente (vinte e dois mais tarde faleceriam), não foram mais fortes que o alento de perceber que aqueles poucos que me seguiam, afinal eram milhares. Nesse momento eu perdi, para sempre, a vontade de voltar para casa.

Caminho na direcção de uma aldeia controlada por Khmeres Vermelhos, não é seguro mas necessito de água. No centro da aldeia um aglomerado de pessoas de militares, homens civis, mulheres e crianças não me permite observar o que se passa, mas ajuntamentos destes são a assinatura de execução pública. Roubo a água e fujo para a mata rapidamente, porém um desviar de olhar leva a penetrar em mim a gota do veneno da tristeza.

Kim, um grande amigo revolucionário encontra-se prostrado, morto, com o corpo separado da cabeça por uns doze metros, cabeça essa que é agora exibida como troféu por um rapaz que não terá mais que 11 anos. Pobre Kim, pobre rapaz. Mas retenho uma coisa, mesmo depois de morto, o olhar de Kim continua a mostrar que este foi um homem que deu sentido a palavra coragem

Também a mim tentaram decapitar varias vezes, Robespierre quase o conseguiu após a revolução francesa, porém fui sempre escapando, dessa vez cheguei a ter o pescoço alinhado com uma guilhotina, mas num volte face extraordinário todo um povo se uniu para me salvar e foi Robespierre que acabou no meu lugar.

Os anos foram passando, prossegui a minha missão, resisti aos romanos em Mossada, estive na capela de um general revolucionário em vinte e cinco de Abril de 1974, invadi o parlamento sérvio, derrubei um muro na Alemanha, fiz parte da guerrilha timorense. Discursei na Bolívia e no Brasil e no resto da América latina.

Que saudades da América Latina, foi lá que vi nascer o meu maior seguidor, não pelo que fez ou não fez, mas pelo que levou outros a fazer, pelo que inspirou. Jovem médico Argentino, de uma honestidade invejável, ainda hoje vejo o seu rosto junto ao peito de milhares em todo mundo. Tombou face à espada da opressão mas o seu espírito não morreu.

Ele está presente em todos Revolucionários, esta presente aqui nesta mata perdida algures no Camboja!

A minha pulsação aumenta repentinamente, momentos de distracção permitiram que caísse em mais uma emboscada

Um ex. seguidor meu corrompido pelo metal pontapeia-me no estômago, cuspo sangue. Sou amarrado. Sou cuspido. Sou esbofeteado. Mas não sou morto nem amedrontado!

Caminho já há horas, mas não me sinto exausto, derrubam-me novamente e as minhas costelas, salientes pela falta de alimento, embatem numa rocha (talvez três se tenham partido tal é a dor) ouço um dos homens a dizer que está a virar ambientalista e por isso me ira usar como cinzeiro, mais propriamente usa os meus olhos como cinzeiro, cegando-me não sei se temporária ou definitivamente. Ando mais uns quilómetros, a cegueira era temporária mas a dor é permanente, um outro refere que quer seguir o exemplo do primeiro, e como está no meio da selva e não existindo ali casas se banho, volta-me a derrubar defecando-me em cima.

Mas nada derruba a minha alma, continuo sem dizer nada, o meu olhar revela superioridade sobre aqueles homens e mesmo quando eles me violam sou eu que tenho a vantagem psicológica.

Estou agora numa sala de audiências, julgamento fabricado acaba de me condenar a forca, sorrio sereno, já sabia antes do julgamento que aquele seria o veredicto, sou levado a uma cela de dezasseis metros quadrados onde estão mais 50 outros reclusos. Passo esta que é supostamente a minha última noite, a contar a minha história, influenciando aqueles que conseguirem se salvar daquele calabouço a seguir o meu caminho. Há muito que não estava tão calmo, não sinto dor, não sinto ódio, apenas uma suave calma que me faz adormecer e descansar. Descansar antes da minha execução

Sou levado da cela por volta das 10h00, milhares vieram assistir a minha morte. Todos que tentaram um dia ser meus carrascos estão na primeira fila da plateia.

Hitler com o seu bigodinho aparado, Estaline com o seu desarranjado, Mugabe, Luís XIV, César augusto, Pinochet, Bush pai e filho, Sadam…

Todos maravilhados com o meu pescoço a ser colocado na forca, apertam bem o nó e no momento que o cadafalso se abre solto uma gargalhada audível em todo planeta.

Pois enquanto povos viverem oprimidos, manipulados. Enquanto crianças tiverem que pegar em armas em África para o enriquecimento do ocidente, enquanto almas forem torturadas eu não morrerei, não posso morrer.

Porque eu sou o espírito revolucionário!