quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Pour toi

Tento me equilibrar numa liana mágica. Não deve ter mais que a espessura de um cabelo, porém a planta dos meus pés aprendeu a adaptar-se perfeitamente a ela e já falta apenas metade da travessia.

Há quanto tempo foi dado o primeiro passo? Não consigo saber, há muito certamente pois já perdi a conta as noites que passaram. Mas recordo o momento, encontrava-me sentado ao pé do abismo, tinha passado os últimos anos da minha vida ali mesmo. Acomodado ao cinzento que me envolvia e com receio da altura do que estava a minha frente. Auto -crucifiquei-me, pregando a minha carne aquele lugar com o medo de não saber o que havia do outro lado.

“E agora respira” foi tocada esta frase na imensidão do nada, mas a minha cabeça ergueu-se tentando discernir a origem daquela melodia. O meu coração parou. O meu corpo congelou. Os meus olhos vidraram. Quase que como no espasmo primordial que é o nascimento, tive um choque imenso ao voltar a ver cor. Vermelhos, verdes, azuis, amarelos, roxos, rosas, laranjas. Entraram nos meus olhos proporcionando o efeito alucinogénico que nos faz sorrir.

Porem a cor estava lá do outro lado, tão longe de mim e com um enorme espaço vazio entre nós. Tentei esquecer aquilo fechando os olhos, acreditando que assim apagaria a vontade de ir para o outro lado. Porem a única coisa que consegui foi adormecer, e então sonhei. Sonhei com coisas belas, músicas encantadoras, telas pintadas com almas, corações batendo de uma forma melodiosa. E este sonhos deixaram de ser monocromáticos.

Quando acordei, ganhei finalmente coragem. Aparentemente não havia forma de percorrer o caminho até a felicidade, no entanto eu sentia que era possível e uma finíssima liana apareceu diante de mim.

Não tive qualquer receio dei imediatamente firmes passos, parecia ter vivido eternamente naquela doce instabilidade, que me fazia balançar sobre a morte mas sem nunca cair.

Agora já a meio do caminho, reparo que este parece mais curto, consigo tocar os dois lados em simultâneo, o cinzento digladia-se com as outras cores tornando a liana cada vez mais instável, quero continuar para o amor que há a minha frente, mas o medo de cair quase me leva a voltar para traz. Sou atingido de ambos os lados por doses letais, ora de felicidade ora de comodismo ao que sempre foi a minha vida.
Tento encontrar coragem num rosto que vi num sonho, e que acredito ter formado esta liana mágica. E faço-lhe um pedido audível no mundo inteiro.
“Por favor, não me deixes cair!”

sábado, 15 de novembro de 2008

Jardim dos loucos

Balouça diante de mim a cabeça de uma pequena rapariga. Está apenas a ouvir musica, por sinal de qualidade duvidosa, porém esta imagem transporta-me para uma outra estranha, mas agradavelmente familiar.
Os meus pés atravessam diariamente um lugar, afundando-se no pântano sensitivo que a ele está inerente. Hoje resolvo parar, injectar-me com todas as essências que podem ser daqui extraídas e viajar por cada rosto do jardim dos loucos. Este é o único local sombrio perfeitamente iluminado, numa simbiose impossível se não num local, onde a sanidade é esquecida e apenas é permitido ser-se humano.
Decido me sentar então. Este jardim polvilhado por bancos, mas onde poucos estão ocupados devido a talvez quem o atravessa acredite que é neles que reside toda a loucura, serve de local de repouso, para umas pernas desgastadas de caminharem num mundo que não é delas.
A primeira face que vislumbro é a de um velho, digo velho pois é desprovido daquele ar simpático que quase todas pessoas com uma certa idade adquirem. Este tem olhos cor de sangue, roupa invernal num dia quente e as mãos negras e cortadas seguram um pão, que não deve ter menos que 8 dias. Porém ele partilha-o, comendo tanto quanto dá a três pombos e associado ao olhar esfomeado que detém começo a sentir simpatia por este homem. Ele resolve me surpreender cantarolando uma música popular sobre o destino, e solta numa voz que deveria ser audível no mundo todo “Destino? Seria meu destino ser um louco?”
“ Todos somos para eles”, revela uma voz feminina, referindo-se aos figurantes deste jardim, as pessoas que o atravessam, sem sentir a sua magia. Esta mulher passa a prender-me a atenção, e reparo que anda a volta da maior arvore, ela conta algo, mas não consigo perceber o quê. Levanto-me, aproximo-me e então entendo, “hoje caíram 200 folhas Joana”. O nome que atribui, num acto maternal, relembra-me alguém cuja sua árvore é de folha caduca, como a minha, alguém que vê o jardineiro, e não esta louca, levar-lhe as folhas caídas do local onde algo novo nascerá. Talvez esta mulher se reveja na Joana, e veja dia após dia folhas caírem, mas mantenha a esperança que a primavera regresse. Pobre mulher tenta que a árvore se agarre á vida, para florescer uma vez mais, embora o seu olhar indique que o seu interior acredita que não passará mais um inverno.
Subitamente sou abordado por duas crianças com quem habitualmente me cruzo num percurso diário, e me colocam uma questão “também és louco?”. A voz pareceu-me em tom de brincadeira, mas os seus olhares transferiram genuinidade á pergunta que só uma criança consegue ter. Não sabendo a resposta a tal pergunta disse “digam vocês” .”Não sabemos, os nossos pais dizem que quem está neste jardim é louco, mas tu não pareces louco, pareces uma criança curiosa como nós”.
Esta frase plena de doçura infantil torna espelhados os meus olhos, fui reconhecido como um deles, por parte dos mais belos seres da terra. Ponho então estes dois geniozinhos, nos meus ombros, e resolvo ir ter com as pessoas que observei enquanto ali estive. Elas apresentam-se receosas, mas rapidamente tornam-se receptivas aos sorrisos infantis. Sentamo-nos e inconscientemente surgem histórias de aventuras vividas e sonhadas sempre com o mesmo calor transmitido pela fogueira, que é aquela grande árvore de folhas vermelhas.

E assim o jardim dos loucos, se tornou o jardim das crianças

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Boa noite e obrigado

Um puxão numa pulseira, sorrisos como retribuição, o corpo sobre a relva, harmonias esvoaçantes. Imagens soltas na minha mente, que com centenas de outras forma o meu Andanças.

O meu Andanças começou em Novembro, as folhas “caíam novamente da minha arvore” e o meu rosto possuía aquele ar sisudo, que habitualmente me habita. No entanto este começava a ser iluminado por novos sorrisos, novas fontes de energia que fariam as minhas folhas novamente crescer. E o mais belo desses sorrisos presenteou-me com uma descrição. Neste lugarzinho a que chamamos mundo existiria um local, onde durante uma semana a terra do nunca se materializava. Milhares de crianças de qualquer idade juntavam-se e partilhavam, um sem número de músicas, historias, danças e brilhos no olhar…

Meses se passaram e as reticencias foram ficando mais carregadas, por vezes quase sou curado do meu síndrome de Peter Pan, a minha mente começou a tomar conta de todas as sensações, e comecei a pensar que o Andanças seria apenas, algo engraçado.

No entanto existem dias em que o meu coração se ergue, desmantela todo racionalismo e põe a nu o que realmente sou. Um desses dias é aquele em que o cravo se torna a mais bela flor, fui comemorá-lo para a cidade dos mil sonhos, e em plena Avenida dos aliados uma banda dava um concerto que me deixou colado.

“São Uxu kalhus, costumam estar no Andanças, olha estão aqui algumas pessoas que também costumam a lá estar!”. Nessa tarde apenas observei com vários sentidos, senti o espírito que havia naquelas pessoas, a beleza da música que era tocada, só convidei a minha alma para dançar, e ela aceitou.

Quando voltei a dar por mim, já estava em São Pedro do sul, bebendo uma super bock, sentado numa bomba de gasolina, à espera da carrinha que me levaria aquilo com que na noite anterior tinha sonhado acordado. Observava dezenas de pessoas belas, inclusive um jovem que foi apelidado de Natura e do qual falarei noutro dia, noutro trecho. Uma calma quase digna de um estado de ataraxia invadia-me, tornava-me tela onde seria pincelado um sorriso.

De seguida veio uma semana que adoraria saber passar para o papel na perfeição. Não sou capaz, por isso o meu espírito apenas me dá permissão para revelar que a cada minuto vislumbrava coisas cada vez mais belas. Uma paz reinava naquela aldeia, onde milhares de pessoas tinham resolvido se encontrar para, serem felizes.

Esculturas em movimento eram elaboradas com grande precisão a cada dança. Notas eram conjugadas, de modo a criarem músicas com o poder de levitar todas as almas e estas surgiam não só nos palcos, mas também nos jardins, na cantina ou noutro local onde estivessem alguém e algo capaz de produzir som. Abraços eram dados sem receio. A fogueira indicava o caminho para histórias que transportavam qualquer um de volta aos seus 5 anos.

Estava realmente ali a terra do nunca, tinha voltado a ser criança e a sensação era algo de maravilhoso. Um dia, a meio da semana fui ao espelho e a tal tela em que me tinha transformado, já havia sido pintada, possuía o mais belo dos sorrisos que fora construído por muitas pessoas que de diferentes formas amei, naqueles dias.

Com a maior parte dessas pessoas quase não troquei palavras, a excepção de três que repeti imensas vezes, enquanto cumpria o meu voluntariado. Partilhei imenso com tantos seres lindíssimos que habitaram carvalhais naquela semana, mas apenas três palavras foram comuns a todos eles. Todos me ouviram dizer:

Boa noite e obrigado!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Tic tac apresenta


B.I. Bilhete de Ida
em exibição no Estúdio Latino do Teatro Sá da Bandeira, de 28 de Maio a 1 de Junho.

todos os dias às 21h45, dia 1 de Junho também às 16h.

estudantes: 4 euros
público geral: 5 euros

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É um Bilhete de Ida para uma viagem que muito poucos têm coragem para empreender. Um passaporte para a complexa dimensão emocional das relações amorosas, com especial ênfase na questão da bissexualidade, e o contraponto com os rígidos paradigmas sociais e religiosos. As várias referências mitológicas pretendem, numa espécie de paradoxo, desmistificar esta mesma questão.

Texto e Encenação de Tó Maia, pois claro.

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mais info:
http://bilhetedeida.hi5.com
teatrotictac@gmail.com
967777528



(texto de marta pereira, sim eu faço parte do elenco

sábado, 26 de abril de 2008

Por abril









cumprimentos a todos

segunda-feira, 24 de março de 2008

Sentado num banco

Acordo, sinto o desagradável aroma de quem teve pesadelos toda noite. Não sou um ser atormentado, porém o meu subconsciente é bastante, e nas últimas noites os monstros e seres de outras galáxias são substituídos pelo teu olhar afastando-se.

Nasceste algures no meu pequeno mundo, em sonhos em que partilhávamos o sangue, sentindo o sabor do outro misturando-se com o nosso. No entanto agora apenas tu bebes, sugas-me as réstias de vitalidade, apenas deixando o suficiente para que sobreviva, não te importas de me ver arrastar por entre ilusões, alucinando com a felicidade onde realmente existe um precipício.

Por vários anos tiveste inúmeras formas. Ou terei sido eu que te procurei em vários corpos, mas na realidade tu apenas assumiste dois? Surgiste sorrindo numa tela mágica, fruto do pincel de um mestre de talento inalcançável, porém nunca te tornaste mais do que esboço, pois a cor teríamos que ser nós a dar e eu, bem eu nunca fui um artista.

Abro a persiana lentamente, observo as minhas cadelas brincando, tentando focar a minha mente em algo que não seja o teu retrato a esfumar-se. Mas prendes a minha mente e este masoquista mental põe o cérebro a trabalhar compassado com o coração criando uma harmonia destrutiva da qual quero fugir. Por isso saio de casa, inspiro todo ar que posso. Este vem repleto de impurezas mas também me traz a vontade de vaguear, encontrar conforto nas ruas do Porto, sou um sem abrigo sentimental, no entanto procuro abrigo onde infelizmente muitos reais sem abrigo o fazem.

Um telefonema indica-me que terei um encontro. Serás tu? Dirijo-me então para uma ampla praça, embora não sem me perder antes um pouco dentro de uma livraria, aliás dentro das histórias que esta alberga. Quando chego a praça ainda ninguém lá está e sento-me num banco, à tua espera.

Um casal idoso abraça-se à minha frente e eu sorrio, por vezes esqueço-me como é bom sorrir, começo-me a perder em sonhos que com o tempo se têm mostrado inacessíveis e durante segundos sou eternamente feliz. Que delicioso contra censo, que porém desaparece rapidamente quando a eternidade acaba e a minha mente volta ao facto de estar ali prostrado, sozinho.

Alguém ergue o meu corpo, no entanto eu permaneço sentado naquele banco, à tua espera.

Não é contigo que me encontro, devido a isso apenas o meu corpo se move. Durante uma tarde ele vê as coisas mais belas, mas nada penetra a minha alma e tudo se perde no ar poluído da minha cidade encantada.

Apenas com o aroma nocturno, o meu ser volta a encontrar plenitude. A companhia mudou e questiono-me mais uma vez se estás presente? E em quem estarás presente? Pois o teu perfume habitual, confunde-se com um outro. Estás a adquirir novamente um corpo diferente? Ou a carência está a tentar-te fabricar?

O certo é que volto a ser capaz de adquirir a beleza dos espaços que percorro.

Deito-me com dois sorrisos, duas vozes, dois esboços de olhar na tela a que chamo mente. Um é com certeza o teu mas parece afastar-se, apagar-se. Outro aparece imperceptível, extremamente suave mas o meu coração tenta acreditar que nele vê carinho.

Adormeço, com iguais percentagens de tristeza e felicidade, pois creio que um dia o nosso sangue se confundirá novamente e apesar de nunca teres existido realmente sei que posso usar a mais bela expressão pela 1ªvez.

Amo-te

André (escrito na minha mente na ultima terça feira)

quinta-feira, 6 de março de 2008

Limpo a lama que me impede de discernir o quanto estou longe do fim deste martírio. Há cerca de três dias que não para de chover, a mata parece-me toda igual e apenas consigo dizer que estou algures em Phnom Penh.

Recordo aquela tarde de Agosto, estava exausto, faziam 44º no exterior de minha casa, mas uma clareza invadia a minha mente, no televisor habitualmente usado para assistir a jogos de Futebol acompanhados de muita cerveja, era exibido um documentário, “ os verdadeiros Diamantes de sangue continuam”. Três horas de expurgações, degolações, corrupção, massacres e violações físicas e mentais apareciam diante dos mesmos olhos que lentamente aprenderam a verter lágrimas genuínas.

Prostrado no chão tentava assimilar o choque de me ser aberto desta forma o mundo real.

Durante semanas as noites foram passadas no beiral da janela, observando o nada, reflectindo sobre tudo, apreciando as mesmas estrelas que serviam de tecto a assassinos e assassinados. Séculos de história mundial sanguinária foram vividos rápida mas intensamente. Fui escravo no antigo Egipto, na Roma imperial, numa nau lusitana, na construção civil espanhola. Fui empalado na Roménia e na federação russa, gazeado na Alemanha, mutilado no Ruanda, decapitado no Camboja, torturado em Abugahibre e Guantanamo.

Acalmo a descrição daquele dia para meu bem, pois a pulsação atinge o seu limite e um som apresenta-se perante mim ao longe, parece-me familiar, porém os sons familiares que têm preenchido os meus dias são os das AK-47 e os gritos de mulheres violadas na mente e no físico.

Malditos sons assombrantes, não me saem do cérebro! Cento e cinquenta almas executadas de uma só vez por terem referido a palavra liberdade, no dia em que descobri o Camboja. Milhares tombados para que todo um povo sonhe.

Refugio-me por entre arbustos, não os de minha casa, como no dia em que fugi.

Cansado, revoltado com o planeta que acabara de conhecer, meti uma mochila as costas e procurei fazer algo, vaguei sem destino mas com orientação para sul, a ideia heróica e sonhadora de uma revolução mental concretizada apenas pelo meu poder de argumentação, foi caindo por terra à medida que os povos aprisionados pelo sofrimento me pediram para partir. Pois eu poderia trazer problemas.

Passei fome quando não encontrava povoações, fui escorraçado de algumas delas, e a vontade de esquecer a minha alma e voltar a casa…ai, ia-se adensando!

O som familiar é uma coluna de mercenários que me procuram, sustenho a respiração e o pestanejar aquando da sua passagem, já não desejo voltar a casa, sou perseguido é certo, milhões pereceram a defender os meus ideais. Mas não desejo voltar a casa, enquanto pelo menos um acreditar naquilo que refiro, todas as baixas e sofrimento terão sentido.

Quando pela 1ª vez tiveram encontrava-me no Sahara ocidental, arrastava-me pelo deserto há três dias sem encontrar povoações, não tinha ninguém, a não ser alguns sonhadores que me haviam seguido a partir de jornadas anteriores.

Movimento da areia em mais uma colina polvilhava-nos com um prenúncio sinistro, o calor alucinogénico não nos permitia discernir o que se encontrava perante nós a mais de dez metros de distância.

Devo confessar que nunca gostei de uniformes, nunca me deram a ideia de igualdade de direitos entre os que os vestem, como seria suposto. Mas sim de seres formatados, iguais entre si por terem perdido a sua individualidade. E no instante que subimos aquela colina, passei a odiá-los.

Dez mil daqueles seres, armados com todo tipos de material bélico, de fabrico de algumas das nações mais poderosas do planeta, apresentavam-se com uma “salva” de metralhadoras que instantaneamente ceifou a vida a vinte e três seguidores. Seguiu-se uma batalha entre robots armados com armas e homens armados com um sonho.

Desta vez os robots venceram.

Porém eu ganhei substancia. As lágrimas sangradas por cento e vinte e oito homens mortos, setenta e cinco capturados, vinte e três feridos gravemente (vinte e dois mais tarde faleceriam), não foram mais fortes que o alento de perceber que aqueles poucos que me seguiam, afinal eram milhares. Nesse momento eu perdi, para sempre, a vontade de voltar para casa.

Caminho na direcção de uma aldeia controlada por Khmeres Vermelhos, não é seguro mas necessito de água. No centro da aldeia um aglomerado de pessoas de militares, homens civis, mulheres e crianças não me permite observar o que se passa, mas ajuntamentos destes são a assinatura de execução pública. Roubo a água e fujo para a mata rapidamente, porém um desviar de olhar leva a penetrar em mim a gota do veneno da tristeza.

Kim, um grande amigo revolucionário encontra-se prostrado, morto, com o corpo separado da cabeça por uns doze metros, cabeça essa que é agora exibida como troféu por um rapaz que não terá mais que 11 anos. Pobre Kim, pobre rapaz. Mas retenho uma coisa, mesmo depois de morto, o olhar de Kim continua a mostrar que este foi um homem que deu sentido a palavra coragem

Também a mim tentaram decapitar varias vezes, Robespierre quase o conseguiu após a revolução francesa, porém fui sempre escapando, dessa vez cheguei a ter o pescoço alinhado com uma guilhotina, mas num volte face extraordinário todo um povo se uniu para me salvar e foi Robespierre que acabou no meu lugar.

Os anos foram passando, prossegui a minha missão, resisti aos romanos em Mossada, estive na capela de um general revolucionário em vinte e cinco de Abril de 1974, invadi o parlamento sérvio, derrubei um muro na Alemanha, fiz parte da guerrilha timorense. Discursei na Bolívia e no Brasil e no resto da América latina.

Que saudades da América Latina, foi lá que vi nascer o meu maior seguidor, não pelo que fez ou não fez, mas pelo que levou outros a fazer, pelo que inspirou. Jovem médico Argentino, de uma honestidade invejável, ainda hoje vejo o seu rosto junto ao peito de milhares em todo mundo. Tombou face à espada da opressão mas o seu espírito não morreu.

Ele está presente em todos Revolucionários, esta presente aqui nesta mata perdida algures no Camboja!

A minha pulsação aumenta repentinamente, momentos de distracção permitiram que caísse em mais uma emboscada

Um ex. seguidor meu corrompido pelo metal pontapeia-me no estômago, cuspo sangue. Sou amarrado. Sou cuspido. Sou esbofeteado. Mas não sou morto nem amedrontado!

Caminho já há horas, mas não me sinto exausto, derrubam-me novamente e as minhas costelas, salientes pela falta de alimento, embatem numa rocha (talvez três se tenham partido tal é a dor) ouço um dos homens a dizer que está a virar ambientalista e por isso me ira usar como cinzeiro, mais propriamente usa os meus olhos como cinzeiro, cegando-me não sei se temporária ou definitivamente. Ando mais uns quilómetros, a cegueira era temporária mas a dor é permanente, um outro refere que quer seguir o exemplo do primeiro, e como está no meio da selva e não existindo ali casas se banho, volta-me a derrubar defecando-me em cima.

Mas nada derruba a minha alma, continuo sem dizer nada, o meu olhar revela superioridade sobre aqueles homens e mesmo quando eles me violam sou eu que tenho a vantagem psicológica.

Estou agora numa sala de audiências, julgamento fabricado acaba de me condenar a forca, sorrio sereno, já sabia antes do julgamento que aquele seria o veredicto, sou levado a uma cela de dezasseis metros quadrados onde estão mais 50 outros reclusos. Passo esta que é supostamente a minha última noite, a contar a minha história, influenciando aqueles que conseguirem se salvar daquele calabouço a seguir o meu caminho. Há muito que não estava tão calmo, não sinto dor, não sinto ódio, apenas uma suave calma que me faz adormecer e descansar. Descansar antes da minha execução

Sou levado da cela por volta das 10h00, milhares vieram assistir a minha morte. Todos que tentaram um dia ser meus carrascos estão na primeira fila da plateia.

Hitler com o seu bigodinho aparado, Estaline com o seu desarranjado, Mugabe, Luís XIV, César augusto, Pinochet, Bush pai e filho, Sadam…

Todos maravilhados com o meu pescoço a ser colocado na forca, apertam bem o nó e no momento que o cadafalso se abre solto uma gargalhada audível em todo planeta.

Pois enquanto povos viverem oprimidos, manipulados. Enquanto crianças tiverem que pegar em armas em África para o enriquecimento do ocidente, enquanto almas forem torturadas eu não morrerei, não posso morrer.

Porque eu sou o espírito revolucionário!