terça-feira, 11 de maio de 2010

Viagem...


O som de um Bulbul Tarang começa a fazer-me mover. Os meus pés, antes como que cimentados ao chão, erguem-se sem esforço e acompanham o ondolamento do resto do corpo. Tenho uma estranha vontade de me mover para oriente, talvez em busca da origem das notas que me envolvem. Desta melodia a qual o meu corpo deixa de obedecer à mente e flui livre.
O ritmo eleva-se fazendo galopar a pulsação para níveis supostamente inatingíveis, porém eu alcanço-os e nesse preciso momento sinto-me a abandonar a terra, ficando cada vez mais perto das nuvens. Estas sorriem num cumprimento de quem há muito me espera, eu retribuo dançando com elas. Sons mais ocidentalizados de violino trazem um velho conhecido para esta dança, o vento, o que nos impele para o meu destino.
Estou agora sobre terras geladas onde nasceram e morreram os ideais de igualdade. E de onde emerge uma força sugadora de “realidade” que me parece puxar para terra. Caio, caio drasticamente em direcção ao solo, às obrigações, as reprimendas, aos olhares desconfiados, aos rostos sisudos. E numa fracção de segundo despeço-me para sempre do sonho…
Mas para mim, sempre e nunca, são palavras que não existem.
Abro os braços soltando uma gargalhada audível em todo mundo e sou automaticamente amparado pela natureza, por 4 corvos lindíssimos que me mostram a vida presente também nos lados negros, eles devolvem-me a onde pertenço e volto a dançar entre as nuvens.
O vento apressa-me, fecho os olhos, rodopio mais rapidamente do que poderia sequer imaginar e quando volto a erguer a pálpebras ali estou eu. No meu destino. Islamabad, terra onde foram vertidas demasiadas lágrimas e demasiado sangue. Mas também onde surgiu o instrumento que originou esta viagem.
Cheguei a casa, assombrado pelos monumentais Palácios e acolhido pelas tendas de vendedores ambulantes. Um deles abraça-me e os seus braços injectam-me nas veias a informação para onde devo ir. Volta o som do Bulbul Tarang e corro com todas certezas, naqueles becos, onde se amontoam peças de cobre com porções de ópio e ecoam regateamentos de preços.


Eis que surge uma porta vermelha.
É aqui que me dirijo, eu sei. Abro-a e músicos aos quais apenas distingo os vultos começam a tocar.
Um sábio acena-me e entrega-me um pau de incenso que diz ser mágico. Guardo-o e começo a dançar. Passam-se horas e não me sinto nem um pouco cansado. È como que cada nota me desse mais e mais energia. Cada música me oferecesse um pouco mais de vida e sinto ser imortal ao dançar.
A dada altura o Bulbul Tarang fica mais forte, e mais, e mais, de tal forma que apenas o ouço a ele, Apesar de todos instrumentos continuarem a tocar, decido instintivamente pegar no pau de incenso e acende-lo. A sua incandescência é tão intensa que me hipnotiza e deixo de controlar por completo o meu corpo. Eu que nunca soube desenhar pareço começar a traçar um corpo enquanto danço.
È um corpo Feminino distingo agora claramente, com todas a proporções correctas, e que esvoaça em harmonia com a Música. Possui um sorriso brilhante, provocador que parece conduzir o olhar para todo corpo. Não consigo parar de sorrir ao sentir a liberdade daqueles movimentos, ao mergulhar na sensualidade das oscilações daquele corpo. Entendo agora que não fui eu que a criei, ela apenas me foi apresentada neste dia em que resolvi ser livre.
Danço com ela, sentindo o prazer da liberdade, sussurro o quão bem me sinto e sincronizamos brilhos de olhares…ela não pertence a nada se não ao mundo e eu, bem eu aprendo a encontrar o mesmo caminho.
Beijo-a na mão e digo um tchau, pois detesto adeus, por hoje abandono-a mas a minha alma reclama quer ser mais dias livre com aquele ser pincelado na tela pela música e encarnado na terra por sorrisos.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Bonequinha de Trapos

Subo escadas rangentes que me dirigem a um sótão. Não o conheço, embora esteja no local a que chamo casa.

Em criança foi-me vedado pelos meus pais, numa medida proteccionista que evitaria possíveis acidentes, e para quebrar a minha curiosidade inventaram uma história de um monstro devorador de crianças, que certo dia havia comido uma princesa mais curiosa. Cresci, e a história devia ter desaparecido, porém ela cresceu no meu interior, de tal forma que dei por mim a acreditar que o monstro não devorará a princesa, mas sim a aprisionará e que daí em diante ele aproveitava o seu choro, para atrair meninos incautos e sonhadores, que passavam do sonho para o estômago do monstro.

Durante as noites ouvi o choro da princesa, não era um choro desesperado, histérico, não. Era terno, um doce lamento que se propagava pelo ar e entrava no meu mundo encantado, seduzia-me cativava-me de modo a que eu não sentia revolta e uma vontade heróica de a salvar, sentia sim a barriga as cambalhotas, os dedos dos pés a encolherem-se e um sorriso surgia em mim, levando-me a ter movimentos sonambulares em direcção ao sótão.

Mas eu nunca gostei muito de princesas, sou mais dado a bonecas de trapos e sempre despertei ao subir o primeiro degrau.

Exactamente dezoito anos após ter vindo parar a esta terra, algo aconteceu, já a lua se tinha instalado entre as duas estrelas mais brilhantes e ainda nada se ouvira vindo do sótão. Adormeci de ouvidos despidos, mas mal pisei a terra dos sonhos o meu corpo foi transportado para um espaço jamais visto. Mas familiar. Vi um lugar amplo, poeirento, armários mais antigos que o próprio edifício lado a lado, formando um U. No centro, bem no centro uma jaula, semelhante às que aprisionam animais nos circos, mas que no seu interior tinha uma menina. Longos cabelos louros ornamentados com uma tiara vestido rodado e cintado sobre um corpo claro de acordo com os olhos azuis. Uma verdadeira princesa.

Acordei do sonho, nessa manha por várias vezes os meus olhos se colaram na porta do sótão, sabia que lá tinha estado no sonho e a minha mente convidava-me a procurar a princesa. “Disparate”, pensava, “como se aquilo fosse possível, já não bastava ouvir vozes até aos dezoito anos, como agora acreditava em sonhos.

Não pensei mais nisso, ou talvez tenha pensado pois continuei a não me dirigir ao sótão, e as minhas noites perderam as vozes. E os sonhos.

Até que se apagaram dezanove velas e a lua voltou à mesma posição, alguém me leu a bela e o monstro antes dos meus olhos se fecharem, e nessa noite retornei ao sonho, ao sótão. Mal invadi aquele misterioso local assisti a algo tenebroso. Uma criatura gigantesca, de longo pelo castanho e garras assustadoras, alimentando-se de um pobre rapaz. Incrivelmente não tive medo, posso até garantir que a ausência de movimento por minha parte não se deveu a petrificação, mas a espanto genuíno que me fez ficar a observar. À medida que finalizava o monstro ficava dócil, sonolento, menos medonho e por traz de si aparecia a jaula. A jaula da princesa. No entanto também ela se transformava, e juro que uma paragem cardíaca aconteceu em mim, ao vislumbrar que com o adormecer do monstro, a princesa se tornava uma pirilimpesca bonequinha de trapos, de cabelo escuro, roupa colorida, pele clara e que dançava, dançava maravilhosamente as notas que só ela ouvia.

O meu despertar trouxe a certeza que teria entrar no sótão, buscar a bonequinha de trapos mesmo que tivesse que morrer a tentar. Subi as escadas de rompante, toquei no puxador e… fui travado pela razão. “ É só um sonho, parvo”

Sim, mais um ano passou. E durante o meu jantar de aniversário, já começava a pensar como seria o sonho dessa noite. Porém senti uma voz “não penses”, voz autoritária que bloqueou o meu cérebro e quando me levantei para apagar as velas, já não estava no jantar. Encontrava-me sobre a jaula, no sótão com a bonequinha de trapos sorrindo para mim e o monstro dormindo. “olha para seu dorso, e descobre como me tirares daqui”. Olhei com a atenção de nunca, procurando o pormenor que qualquer olho humano não notaria, e vi, vi uma ferida aberta na espinha do monstro.

Regressei ao mundo, com os sentidos ainda cambaleantes, no momento em que me dava uma prenda. Uma bonequinha de porcelana em forma de princesa. “Se a deixar cair ainda fica uma boneca de trapos” disse rindo interiormente, numa piada que só eu entendi.
E mais uma vez acobardei-me.

Até há segundos, quando um encosto involuntário fez derrubar a “princesa” do seu pedestal, tornar-se cacos, mas no seu interior, revelar uma boneca de trapos.

Estou com a mão no puxador e agora nada me fará recuar, abro a porta com toda a força e esta parece demorar uma vida a abrir. Mas lá esta, o sótão, igual ao que sonhei, contorno os móveis e sou imediatamente derrubado, as garras do monstro rompem-me o peito, os seus dentes procuram entrar em minha carne, mas consigo escapar-me. Ele persegue-me e subo para cima de um móvel, quase caio, mas livros como principezinho, Alice no país das maravilhas e Peter pan sacrificam-se para me salvar. Os meus olhos ganham alcance para o seu dorso…Salto, e caio perfeitamente no local da ferida. Seguro-me com toda a força evitando as chicotadas corporais e começo a lamber a ferida. Deposito com a minha saliva, todo o amor que sempre quis dar a alguém, aquele ser tem um ferida incurável e eu tento apagar o seu sofrimento. Lentamente as chicotadas desvanecem, ele deita-se, acalma e a ferida fecha. Desço escorregando no seu macio pelo e antes mesmo de procurar algo mais, olho o seu rosto. Ele dorme, sorrindo e eu subo ao seu nariz de modo a dar-lhe um beijo na testa.

Ouço, o barulho de um cadeado abrir, lá está ela ainda mais bela que os meus sonhos me mostraram, tem a chave da sua sela na mão. “Apenas esperava por ti, podia fugir quando quisesse”. Não, não é confusão que surge em mim com esta frase, é outra coisa, aquele sentimento que só alguns sabem exprimir mas que para o qual ainda não se inventou palavra, talvez por ser a união de todas as sensações. Sorrimos, choramos, e as nossas lágrimas caem em simultâneo, ouço a mesma música que só ela ouvia.

E dançamos

E dançamos

E abraçamo-nos

E abraçamo-nos

E beijamo-nos

E beijamo-nos


Num preludio de dias e noites juntos, escutando a música que só nós ouvimos e cuidando daquele ser adormecido.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Eu, novo

“És preconceituoso!” Duas palavras que se transformam em armas, uma machadada no meu pescoço, uma bala na garganta, um soco no peito, uma granada no estômago. Porém qualquer destes engenhos é accionado por mim, no preciso momento em que sinto, “é verdade”, nada de injustiças, de raivas, incompreensão. Apenas a dura aceitação da culpa, sentindo-me como que um assassino que no momento em que é lida a sentença, e o juiz diz “culpado” se apercebe que realmente matou alguém. Neste caso cometi o meu próprio homicídio.

Há exactamente um ano atrás tive uma conversa deliciosa, não devido ao bolo de chocolate que a acompanhou, nem pela beleza de quem estava do outro lado da mesa mas porque me fez perceber ter adquirido plenamente o princípio que há muito regia a minha vida. Aprender com cada partícula que se cruze comigo. Nos meses anteriores e posteriores, conheci uma primavera de pessoas, às vezes dezenas delas por dias. Fui capaz de discutir tudo de uma base livre expondo, oferecendo, ouvindo e adquirindo ideias e perspectivas, construi-me e fui feliz.

Porém quanto mais cresci também se adensou em mim, outra coisa, outro sentimento, mais invernil, mais frio, o medo. Medo que tudo um dia acabasse, um pavor congelante de deixar de ser um vampiro emocional, capaz de se alimentar dos sorrisos e dos conhecimentos das pessoas com que se cruza. O vampiro tornou-se predador, em busca de sorrisos que o confortassem, quis sentir ser especial e viciou-se em elogios. Mas os vícios são sempre perigosos e quanto mais elogios recebia, mais era o medo de os perder, Tremia apenas a pensar que poderia deixar de fazer as pessoas felizes e sem reparar passou a tentar esconder imperfeições. Apenas queria criar sorrisos nas pessoas, nada de lágrimas. Sem se aperceber quis ser perfeito.

E com isto os meus dias passaram a ser programados, duas horas na faculdade que “mete nojo”, depois vou ate aquele jardim onde está o palhaço que me faz sorrir, passo pelo lusitano onde terei uma conversa filosófica extremamente agradável, vou para casa e escrevo um texto a falar de como é bom aprender…Mas aprender o quê? Que aprendi eu num dia totalmente orientado e onde procurei momentos interessantes indo a locais onde acharia que eles estariam? Foi assim que aprendi o que sei? Foi assim que partilharam comigo maravilhas que mais tarde foram partilhadas por mim, e assim sucessivamente criando uma verdadeira corrente de felicidade?

Não sei como, mas esqueci-me que a Faculdade que mete nojo, me trouxe a pessoa mais importante da minha vida, trouxe o amor ao teatro, trouxe-me a alegria de dançar. Esqueci-me que as conversas filosóficas extremamente agradáveis no Lusitano, nasceram muitas vezes em tabernas onde entrei para beber uma água e frases como “nós somos bêbados, não acredita? Apenas bêbados falam de política seriamente”, entraram em mim, criando a certeza de ter que conhecer o seu autor. Esqueci-me até, que o palhaço só me faz sorrir, quando eu não sei que ele esta lá e surge inesperadamente.

Não acontece nada novo, mas não acontece não por culpa do mundo estar parado, das coisas bonitas fugirem, do Sócrates ser primeiro-ministro, de a Maddie não aparecer ou até de haver uma conspiração mundial contra mim. Não acontece nada novo porque quis esconder imperfeições, quis ser eu a programar a felicidade, e ela é livre só vem quando e como lhe apetece. Procurei tanto a loucura que a minha mente ficou sã. E mais perdi aquela que era a minha maior qualidade, a vontade incessante de aprender e transmitir o que aprendi, o abrir os braços a qualquer pessoa e inspirar tudo que ela tem para dar. Sem medos, partilhando tudo que há de belo e de monstro em mim. Nunca quis ser perfeito, isso não existe, é tão falso como a palavra sempre, outrora quis aprender e melhorar, corrigir defeitos. E só agora percebi que ao apagar os defeitos, em vez de analisá-los, discuti-los e aprender com quem já os teve, tem, ou até os repudia. Me fez também apagar aquilo que tenho de bom, aquilo que realmente me tornava interessante. Ser capaz de aprender com cada partícula que se cruze comigo, não procurar nada dos dias, estar simplesmente aberto ao que eles têm a dar.

Tive exame hoje de manha, não correu muito bem. Estudei pouco. Quando saí encontrei o Sérgio cá fora. O Sérgio é um rapaz da faculdade que “mete nojo”, mas com quem pouco fui falando ao longo do tempo, nos últimos meses talvez duas ou três vezes. Nunca passou do “olá tudo bem?”, “então tens ido a muito concertos?”, sempre tive mais apressado em busca de não sei o que…mas hoje deixei que ele fosse além do “o exame correu bem?” e o resultado, foi a conversa acabar 3 horas depois, após gargalhadas, partilhas de experiencias em concertos e debate a cerca dos milhares de estilos de metal existentes. Saí da faculdade, sem antes não deixar de reparar, que apesar de feia, ela até tem uns jardins engraçados, não sabia muito bem para onde ia, não queria saber. O meu corpo dirigiu-se até dois livros, com a correspondência de Fernando Pessoa que passaram a ser minha pertença, depois foi até um café onde a minha falta de habilidade em abrir a porta, me levou a conhecer o João. O João é um estudante de filosofia, lia Nietzsche quando lá cheguei, Nietzsche é o meu filósofo favorito, o dele é Kafka. Expliquei que nunca tinha entendido o fascínio por Kafka, e que certas coisas nele me pareciam ate verdades de La Palice. Ao que ele contrapôs dizendo que também lhe acontecera isso em Nietzsche e que por isso é que andava a lê-lo muito, para compreender o fascínio, e que achava que começava a perceber. O João teve que se ir embora mas deixou-me a sorrir, vi na vontade de compreender dele o que eu já fui. O resto do dia, trouxe-me um semi-frio de caramelo, a Joana (a tal pessoa mais importante da minha vida, que conheci na faculdade, que se calhar até nem mete nojo), a amiga da Joana que também se chama Joana, uma avaria de comboio e um beijo na testa da minha mãe.

E sabem, senti-me bem. Não só em momentos do dia, mas em todo ele. Não correu como esperava, porque dele nada esperava. Não teve momentos lindos, teve momentos normais, que acontecem em dias normais, tal como os momentos bonitos. Hoje quando for dormir saberei novamente o que é um dia a sorrir, sem pensamentos desnecessários. Mais saberei que, não de um dia para o outro é certo, mas que com os dias, recuperarei a minha curiosidade e vontade de aprender. Deixarei acima de tudo de ter medo dos defeitos, pois eu não sou perfeito, nem quero ser. Só quero mesmo ser eu, haverá quem goste, haverá quem não goste.
Mas acima de tudo eu voltarei a gostar de mim.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Pour toi

Tento me equilibrar numa liana mágica. Não deve ter mais que a espessura de um cabelo, porém a planta dos meus pés aprendeu a adaptar-se perfeitamente a ela e já falta apenas metade da travessia.

Há quanto tempo foi dado o primeiro passo? Não consigo saber, há muito certamente pois já perdi a conta as noites que passaram. Mas recordo o momento, encontrava-me sentado ao pé do abismo, tinha passado os últimos anos da minha vida ali mesmo. Acomodado ao cinzento que me envolvia e com receio da altura do que estava a minha frente. Auto -crucifiquei-me, pregando a minha carne aquele lugar com o medo de não saber o que havia do outro lado.

“E agora respira” foi tocada esta frase na imensidão do nada, mas a minha cabeça ergueu-se tentando discernir a origem daquela melodia. O meu coração parou. O meu corpo congelou. Os meus olhos vidraram. Quase que como no espasmo primordial que é o nascimento, tive um choque imenso ao voltar a ver cor. Vermelhos, verdes, azuis, amarelos, roxos, rosas, laranjas. Entraram nos meus olhos proporcionando o efeito alucinogénico que nos faz sorrir.

Porem a cor estava lá do outro lado, tão longe de mim e com um enorme espaço vazio entre nós. Tentei esquecer aquilo fechando os olhos, acreditando que assim apagaria a vontade de ir para o outro lado. Porem a única coisa que consegui foi adormecer, e então sonhei. Sonhei com coisas belas, músicas encantadoras, telas pintadas com almas, corações batendo de uma forma melodiosa. E este sonhos deixaram de ser monocromáticos.

Quando acordei, ganhei finalmente coragem. Aparentemente não havia forma de percorrer o caminho até a felicidade, no entanto eu sentia que era possível e uma finíssima liana apareceu diante de mim.

Não tive qualquer receio dei imediatamente firmes passos, parecia ter vivido eternamente naquela doce instabilidade, que me fazia balançar sobre a morte mas sem nunca cair.

Agora já a meio do caminho, reparo que este parece mais curto, consigo tocar os dois lados em simultâneo, o cinzento digladia-se com as outras cores tornando a liana cada vez mais instável, quero continuar para o amor que há a minha frente, mas o medo de cair quase me leva a voltar para traz. Sou atingido de ambos os lados por doses letais, ora de felicidade ora de comodismo ao que sempre foi a minha vida.
Tento encontrar coragem num rosto que vi num sonho, e que acredito ter formado esta liana mágica. E faço-lhe um pedido audível no mundo inteiro.
“Por favor, não me deixes cair!”

sábado, 15 de novembro de 2008

Jardim dos loucos

Balouça diante de mim a cabeça de uma pequena rapariga. Está apenas a ouvir musica, por sinal de qualidade duvidosa, porém esta imagem transporta-me para uma outra estranha, mas agradavelmente familiar.
Os meus pés atravessam diariamente um lugar, afundando-se no pântano sensitivo que a ele está inerente. Hoje resolvo parar, injectar-me com todas as essências que podem ser daqui extraídas e viajar por cada rosto do jardim dos loucos. Este é o único local sombrio perfeitamente iluminado, numa simbiose impossível se não num local, onde a sanidade é esquecida e apenas é permitido ser-se humano.
Decido me sentar então. Este jardim polvilhado por bancos, mas onde poucos estão ocupados devido a talvez quem o atravessa acredite que é neles que reside toda a loucura, serve de local de repouso, para umas pernas desgastadas de caminharem num mundo que não é delas.
A primeira face que vislumbro é a de um velho, digo velho pois é desprovido daquele ar simpático que quase todas pessoas com uma certa idade adquirem. Este tem olhos cor de sangue, roupa invernal num dia quente e as mãos negras e cortadas seguram um pão, que não deve ter menos que 8 dias. Porém ele partilha-o, comendo tanto quanto dá a três pombos e associado ao olhar esfomeado que detém começo a sentir simpatia por este homem. Ele resolve me surpreender cantarolando uma música popular sobre o destino, e solta numa voz que deveria ser audível no mundo todo “Destino? Seria meu destino ser um louco?”
“ Todos somos para eles”, revela uma voz feminina, referindo-se aos figurantes deste jardim, as pessoas que o atravessam, sem sentir a sua magia. Esta mulher passa a prender-me a atenção, e reparo que anda a volta da maior arvore, ela conta algo, mas não consigo perceber o quê. Levanto-me, aproximo-me e então entendo, “hoje caíram 200 folhas Joana”. O nome que atribui, num acto maternal, relembra-me alguém cuja sua árvore é de folha caduca, como a minha, alguém que vê o jardineiro, e não esta louca, levar-lhe as folhas caídas do local onde algo novo nascerá. Talvez esta mulher se reveja na Joana, e veja dia após dia folhas caírem, mas mantenha a esperança que a primavera regresse. Pobre mulher tenta que a árvore se agarre á vida, para florescer uma vez mais, embora o seu olhar indique que o seu interior acredita que não passará mais um inverno.
Subitamente sou abordado por duas crianças com quem habitualmente me cruzo num percurso diário, e me colocam uma questão “também és louco?”. A voz pareceu-me em tom de brincadeira, mas os seus olhares transferiram genuinidade á pergunta que só uma criança consegue ter. Não sabendo a resposta a tal pergunta disse “digam vocês” .”Não sabemos, os nossos pais dizem que quem está neste jardim é louco, mas tu não pareces louco, pareces uma criança curiosa como nós”.
Esta frase plena de doçura infantil torna espelhados os meus olhos, fui reconhecido como um deles, por parte dos mais belos seres da terra. Ponho então estes dois geniozinhos, nos meus ombros, e resolvo ir ter com as pessoas que observei enquanto ali estive. Elas apresentam-se receosas, mas rapidamente tornam-se receptivas aos sorrisos infantis. Sentamo-nos e inconscientemente surgem histórias de aventuras vividas e sonhadas sempre com o mesmo calor transmitido pela fogueira, que é aquela grande árvore de folhas vermelhas.

E assim o jardim dos loucos, se tornou o jardim das crianças

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Boa noite e obrigado

Um puxão numa pulseira, sorrisos como retribuição, o corpo sobre a relva, harmonias esvoaçantes. Imagens soltas na minha mente, que com centenas de outras forma o meu Andanças.

O meu Andanças começou em Novembro, as folhas “caíam novamente da minha arvore” e o meu rosto possuía aquele ar sisudo, que habitualmente me habita. No entanto este começava a ser iluminado por novos sorrisos, novas fontes de energia que fariam as minhas folhas novamente crescer. E o mais belo desses sorrisos presenteou-me com uma descrição. Neste lugarzinho a que chamamos mundo existiria um local, onde durante uma semana a terra do nunca se materializava. Milhares de crianças de qualquer idade juntavam-se e partilhavam, um sem número de músicas, historias, danças e brilhos no olhar…

Meses se passaram e as reticencias foram ficando mais carregadas, por vezes quase sou curado do meu síndrome de Peter Pan, a minha mente começou a tomar conta de todas as sensações, e comecei a pensar que o Andanças seria apenas, algo engraçado.

No entanto existem dias em que o meu coração se ergue, desmantela todo racionalismo e põe a nu o que realmente sou. Um desses dias é aquele em que o cravo se torna a mais bela flor, fui comemorá-lo para a cidade dos mil sonhos, e em plena Avenida dos aliados uma banda dava um concerto que me deixou colado.

“São Uxu kalhus, costumam estar no Andanças, olha estão aqui algumas pessoas que também costumam a lá estar!”. Nessa tarde apenas observei com vários sentidos, senti o espírito que havia naquelas pessoas, a beleza da música que era tocada, só convidei a minha alma para dançar, e ela aceitou.

Quando voltei a dar por mim, já estava em São Pedro do sul, bebendo uma super bock, sentado numa bomba de gasolina, à espera da carrinha que me levaria aquilo com que na noite anterior tinha sonhado acordado. Observava dezenas de pessoas belas, inclusive um jovem que foi apelidado de Natura e do qual falarei noutro dia, noutro trecho. Uma calma quase digna de um estado de ataraxia invadia-me, tornava-me tela onde seria pincelado um sorriso.

De seguida veio uma semana que adoraria saber passar para o papel na perfeição. Não sou capaz, por isso o meu espírito apenas me dá permissão para revelar que a cada minuto vislumbrava coisas cada vez mais belas. Uma paz reinava naquela aldeia, onde milhares de pessoas tinham resolvido se encontrar para, serem felizes.

Esculturas em movimento eram elaboradas com grande precisão a cada dança. Notas eram conjugadas, de modo a criarem músicas com o poder de levitar todas as almas e estas surgiam não só nos palcos, mas também nos jardins, na cantina ou noutro local onde estivessem alguém e algo capaz de produzir som. Abraços eram dados sem receio. A fogueira indicava o caminho para histórias que transportavam qualquer um de volta aos seus 5 anos.

Estava realmente ali a terra do nunca, tinha voltado a ser criança e a sensação era algo de maravilhoso. Um dia, a meio da semana fui ao espelho e a tal tela em que me tinha transformado, já havia sido pintada, possuía o mais belo dos sorrisos que fora construído por muitas pessoas que de diferentes formas amei, naqueles dias.

Com a maior parte dessas pessoas quase não troquei palavras, a excepção de três que repeti imensas vezes, enquanto cumpria o meu voluntariado. Partilhei imenso com tantos seres lindíssimos que habitaram carvalhais naquela semana, mas apenas três palavras foram comuns a todos eles. Todos me ouviram dizer:

Boa noite e obrigado!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Tic tac apresenta


B.I. Bilhete de Ida
em exibição no Estúdio Latino do Teatro Sá da Bandeira, de 28 de Maio a 1 de Junho.

todos os dias às 21h45, dia 1 de Junho também às 16h.

estudantes: 4 euros
público geral: 5 euros

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É um Bilhete de Ida para uma viagem que muito poucos têm coragem para empreender. Um passaporte para a complexa dimensão emocional das relações amorosas, com especial ênfase na questão da bissexualidade, e o contraponto com os rígidos paradigmas sociais e religiosos. As várias referências mitológicas pretendem, numa espécie de paradoxo, desmistificar esta mesma questão.

Texto e Encenação de Tó Maia, pois claro.

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mais info:
http://bilhetedeida.hi5.com
teatrotictac@gmail.com
967777528



(texto de marta pereira, sim eu faço parte do elenco